Publicado em 26 de jun de 2020

“O que é este cabelo?”

“O que é este cabelo?”. Escutei essa frase ontem do meu pai, desci para ajudá-lo a beber água, ele me pediu para servir – sim digo servir com todo o teor de serventia da palavra – um suco para o velho amigo contador, e quando eu me dirigia para a porta…

“O que é este cabelo?”. Simplesmente me viro, e mesmo deitado na cama hospitalar nada tira o sorrisinho debochado de sempre da cara. Eu, com a fúria que carrego desde meus primeiros cachos respondo: “foi o que você me deu”. Respiro fundo e saio.

Hoje, acordei com o cabelo pior que ontem. Me olhei no espelho e enquanto exprimia o tudo de creme de pentear, apanhava uma escova e dava conta de molhar o cabelo pra tirar o frizz, pensei: “ah, se ele me visse assim”.

O resultado foi a bailarina de apenas seis anos com seus fios grudados ao rosto, quase desenhando o contorno de sua cabecinha, só que dessa vez o rabo de cavalo ocupa o lugar do alto coque com infinitos grampos.  E foi assim que aprendi a cuidar de cada raiz que tenho.

“O que é este cabelo?”
“Primeira posição, mão de bailarina em, sorrindo sempre! Pronto menina, próxima…” 

Sair da aula de ballet com o cabelo repuxado não era o problema, afinal minhas colegas estavam do mesmo jeito. Mas ir para a escola encontrar com a maioria da turma de madeixas como se tivessem participado da propaganda da Seda (no início dos anos 2000 ainda era difícil encontrar comerciais de shampoo para diversos tipos de cabelo), isso sim começou a borbulhar meus pensamentos de criança.

Ao mesmo tempo, chegava em casa e via a representatividade (#SQN) da minha mãe iniciando seu grande relacionamento com a progressiva à base de formol. Ou seja, segundo os cabeleireiros que a inventaram, em 2003 no Rio de Janeiro, seus fios podiam ficar livres de ondas por até três meses. Sonho, não?

Claro! Então, a pequena Juliana, que não deixou de escutar sobre a “bagunça” de seu cabelo pela manhã ou da preguiça que tinha em arrumá-lo aos finais de semana e férias, começou a soltar pelos cotovelos: “se minhas amigas tem, por que eu não posso?”. “Filha, você é muito nova. Isso faz mal”. “Ué! Mas não fez mal pra você, mãe”. “Tá bom vai, mas só dessa vez”.

1,2,3…A época que mais fiz alisamento foi na infância e pré-adolescência. Era olho ardendo, nariz irritado com o cheiro forte, fumaça química, horas no salão que eu nunca gostei, tudo para chegar em casa e escutar do meu pai “que cabelo lindo, filha! Está longo, arrumado”.

“O que é este cabelo?”
O alisamento também atingiu minha irmã mais velha. Diferente de mim, ela parou antes, contudo nunca abandonou a brincadeira com as cores depois da primeira tintura.

Como eu, meu cabelo estava em processo de formação, é o que os profissionais da área chamam de “virgem”. Sigmund Freud, em suas observações sobre a psique humana, explica que a infância tem papel essencial na construção da personalidade. É nessa fase que estruturamos nossa mente.

Na teoria dos traumas, ligada ao inconsciente, o psiquiatra conectou esses conflitos emocionais aos primeiros anos de vida. Por exemplo, memórias de opressão ao uso do cabelo solto que ocorreram inúmeras vezes afetaram, consequentemente, a minha personalidade.

Esses modos ficam nítidos no jeito de se comunicar, andar, vestir. E uma das formas mais importantes que nos apresentamos ao mundo é por meio da moda. O cabelo faz parte do vestir, já que possibilita mudança de cor, adereços…entretanto se o próprio estilo é moldado, imposto, a visão que você expõe pro mundo de si também é distorcida.

Coco Chanel (uma das mulheres empreendedoras que eu mais admiro) costumava dizer já na década de 20: “a moda tem a ver com ideias, com a forma que você vive”. Conforme fui crescendo, reparando que eu estava reproduzindo o mesmo discurso do meu pai com a minha mãe e passei a receber do mercado exemplos representativos femininos com o mesmo cabelo que o meu, nossa! Inconscientemente, isso fez a diferença!

Hoje, conheço mulheres incríveis que passaram por transição capilar. As cacheadas Alice, Paola, Cecília, Carol…como elas me ensinaram, confesso que até invejo a coragem delas por aceitarem todas as angústias desse momento. Já tentei e nunca passo de uma, duas semanas, sempre acabo escutando, seja do meu pai ou colega de trabalho “não arrumou a juba”, “acordou agora” e assim seguem os discursos.

Esses são os cachos de Alice. Às vezes são cuidados, às vezes não. Mas hoje é escolha dela sê-la.

Então, por hora não consigo deixar o meu cabelo ser ele. Há sempre aquele fio bravo comigo por não ter cuidado dele. E eu preciso aquecê-lo novamente, está drogado. Queria nunca precisar do “remédio”, queria que minha mãe tivesse parado enquanto havia tempo e eu soava: “lembro sempre de você na estrada com os cabelos cacheados ao vento, o sol irradiando ele e a boa música de Kid Abelha – Nada Sei. Cena mais bonita”.

Antes de nos despedirmos, sabe o que é mais incômodo disso tudo? Provavelmente, você leu esse texto e julgou meu cabelo como cacheado! Não, simplesmente tem suas belas ondas, ou melhor, teria. Tá vendo? Mais uma vez a mulher é encaixotada no estereótipo e no padrão de beleza.

Eu pergunto:

“O que é este padrão?”.

Até breve, Ju.

Curiosidade:

A primeira chapinha, mais ou menos do modelo que conhecemos hoje, foi patenteada pelo engenheiro Isaak K. Shero, em 1909. A flat iron, como era chamada a prancha, foi então: criada por um homem; porém ela despontou mesmo próximo aos anos 20, período em que a sociedade feminina teve que assumir os postos de trabalho dos homens enquanto estavam na I Guerra Mundial (1914-1918).

Te convido a questionar comigo: não é no mínimo curioso um utensílio como esse ter sido criado por um homem, a quem a mulher costuma ser estereotipada com a frase “mulher demora muito para se arrumar” (tentei encontrar a data de quando a sociedade machista aderiu essa frase, mas não encontrei. Caso você saiba, conta nos comentários!), e ainda ter tido sua explosão comercial quando se deu a necessidade delas se arrumarem mais rápido?

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Postado por

Juliana Garcia

Sou jornalista, apaixonada por audiovisual, redes sociais, pessoas e histórias. Mas não só. Gosto da arte, da natureza, da vida. Que de vez em quando nos faz de cactos, ensina a sobreviver em meio às adversidades. E tá tudo bem, porque tudo é questão de perspectiva. Concorda? 

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